O EIXO LIBERAL
Publicado na Revista Atlantico.
Angela Merkel, David Cameron, Nicolas Sarkozy. Estes três nomes, e potenciais líderes europeus, podem ser a próxima oportunidade para a Europa. Em substituição do motor franco-alemão, é possível criar um eixo com sede em Paris, Londres e Berlim. Um eixo liberal. A economia europeia agradeceria.
Eleito líder dos conservadores com uma maioria mais do que confortável, David Cameron dirigiu-se pela primeira vez ao primeiro-ministro britânico para lhe dizer que Blair já tinha sido o futuro, e agora era ele, David. Quem viu a transmissão na BBC terá reparado que Blair não só esteve bastante condescendente, como até parecia um pouco enternecido. Finalmente tinha sucessor. E, como se adivinhava, não era do seu lado, era do lado de lá da bancada parlamentar. Gordon Brown irá, muito provavelmente, herdar o governo e o Labour, mas o New parece ter sido deixado em herança a Cameron. Resta saber quando é que vão ser as eleições legislativas inglesas, previstas para 2009-2010, e quem é que as vai ganhar, claro.
Algumas semanas antes, em Berlim, uma frágil Angela Merkel ganhava as eleições legislativas antecipadas por uma margem minúscula mas suficiente para fazer regressar os democrata-cristãos ao poder. Acompanhados pelos sociais-democratas, é certo, mas de volta e com promessas de reforma.
Quase ao mesmo tempo, as revoltas suburbanas em França recolocaram Nicolas Sarkozy, o líder da UMP e farei-tudo-o-que-for-preciso-para-ser-candidato-presidencial-da-direita-em-2007, no centro das atenções. Insultado pelas elites por ter adoptado uma postura securitária e um discurso pouco social, o filho de um imigrante da burguesia húngara recebeu o acordo de uma vasta maioria da população. Quando os subúrbios ardem a classe média tende a encontrar maiores virtudes na Lei e na Ordem do que nas preocupações sociais.
Para fechar esta coincidência temporal, no início de Novembro José Manuel Barroso, que não pôde escolher os comissários que tem, remodelou os lugares de topo da administração comunitária numa espécie de golpe de estado entre as oito da noite e as oito da manhã. No dia seguinte o conservador britânico The Daily Telegraph declarava "Tatcherites take Control of Europe". Um exagero, sem dúvida. Mas a verdade é que a revolução foi suficientemente visível para que um eurodeputado centrista francês se declarasse, numa carta aberta, inquieto enquanto francês, enquanto europeu e enquanto democrata. Jean-Louis Bourlanges, é esse o nome do patriota, percebeu o óbvio: depois de ter andado entre um lado e o outro, Barroso resolveu ser liberal. Pelo menos para já. Ou por enquanto.
A esta altura ninguém conhece o resto do guião nem sabe como vai acabar a história, mas estes quatro actos parecem indicar que há uma viragem à direita. E há boas razões para isso.
O modelo social europeu não está em causa, nem vai estar. Ao contrário do que muitas vezes se diz e escreve, não existe uma guerra ideológica na Europa entre uma Esquerda anticapitalista e uma Direita supostamente ultraliberal que abomina o estado social e pretende um modelo liberal puro e duro. Quanto mais não seja porque não houve nem há espaço para um liberalismo puro, muito menos duro, na Europa. E porque à esquerda também há alguma dose de realismo. O que divide as águas é outra coisa, é a economia, é a oposição entre uma visão reformista e libertadora da economia e uma ideia antiga de capitalismo sobretudo de Estado e de direitos irremediavelmente adquiridos. O confronto é este e a boa notícia é que a Europa está a virar à direita. Ou, pelo menos, tem condições para o fazer.
Roger Cohen, jornalista e colunista do New York Times e do International Herald Tribune especializado em assuntos internacionais, resumiu bem a situação. Ainda em Outubro explicava que os ataques do fundamentalismo islâmico em Madrid, Amesterdão e Londres, por um lado, e a dificuldade da economia europeia em responder à pressão provocada pelo desemprego imediato e pelo constante envelhecimento da população, por outro, empurram a Europa para a Direita. "O terrorismo significa que a Lei a Ordem, parte da mensagem eleitoral vencedora de Angela Merkel está na moda, e que a indulgência em relação à imigração está fora de moda. As dificuldades económicas, especialmente em França e na Alemanha, empurram na direcção das reformas económicas. Ambas as tendências favorecem a direita."
Do outro lado da barricada, o berlinense Die Tagszeitung garantia, no início de Dezembro, que os tempos de mudança que tantos previam afinal não viriam aí. Na sequência da formação do governo alemão, Sabine Herre achava que os que contavam com um trio germano-franco-britânico, chefiado por Merkel, pelo presidenciável Sarkozy e por Blair para colocarem a Europa no caminho das reformas profundas, nomeadamente as reformas económicas, deviam começar a refazer a sua contabilidade. Segundo esta corrente de opinião, Blair está morto, Sarkozy não foi liberal nem reformista quando foi ministro das Finanças em 2004 e a coligação liderada por Merkel é um acordo provisório com traição à vista. Um desastre, portanto, só comparável ao suposto annus horribilis de 2005. É uma visão. Há outras.
Depois de fazer o seu número de apresentação na Câmara dos Comuns, Cameron dirigiu-se a uma escola de um bairro pobre de Londres. O último sítio onde encontrar eleitores conservadores, sobretudo para quem os imagina brancos e com particular predilecção pela caça à raposa. Acontece que o líder conservador, que nem 40 anos tem, resolveu mudar o partido. Pode parecer uma contradição, mas a convicção generalizada é a de que o maior problema dos conservadores era a sua imagem retrógrada e distante das preocupações dos ingleses comuns. Cameron, que percebeu isso desde o início da corrida, prometeu procurar chegar a um eleitorado jovem e urbano. Prometeu e, para já, parece que vai cumprir. O ministro das Finanças que manteve no gabinete sombra é o seu amigo George Osborne, o homem − ou será melhor dizer o rapaz de 34 anos? − que já defendeu que se devia discutir a possibilidade de introduzir o flat tax na Grã-Bretanha. De resto, declarou-se contra a exagerada regulamentação europeia, contra medidas excessivamente securitárias (na perspectiva dos ingleses o Bilhete de Identidade é uma violência securitária), defende uma política de imigração controlada e razoável, foi a favor da intervenção no Iraque e não quer uma retirada irresponsável agora. Acresce que declarou, e também parece disposto a cumprir, não querer fazer uma oposição constante. Ou seja, agora que há cada vez mais deputados trabalhistas a exibir sem reservas a sua falta de amor ao chefe e a sua pouca convicção liberal, os Tories estão disponíveis para herdar tudo que ficar à direita do Labour. Neste cenário, é Gordon Brown quem corre maiores riscos, já que pode ter de escolher entre perder as políticas de centro ou o partido de esquerda.
Com Londres, portanto, parece que se pode continuar a contar para a reforma da economia europeia. Não será por aqui que a directiva dos serviços vai sucumbir ou que o reforço das competências comunitárias vai receber um impulso.
Entretanto, em Berlim Angela Merkel agarrou-se à magra vitória eleitoral e só descansou quando foi oficializada como chefe da coligação CDU/CSU + SPD, assegurando uma agenda política que inclui aumentos do IVA para fazer face ao défice mas, ao mesmo tempo, reduções das quotizações sociais, incentivos fiscais ao investimento, reforma do mercado de trabalho e, como começa a acontecer em todos os países onde o modelo social europeu é mais generoso, a alteração da idade da reforma. Para mais tarde, claro. A senhora, que ia perdendo as eleições por ter sido demasiado sincera quanto à necessidade de reformas da economia alemã, fez um contrato com os sociais-democratas que muitos declaram já ser um casamento com divórcio certo e conturbada divisão de bens à vista. Um raciocínio linear diria que sim. Por que razão é que os únicos partidos com possibilidade de dirigir a política alemã hão-de partilhar o ónus das reformas dolorosas? Porque elas vão resultar, responde Michael Heise, economista chefe do Dresdner Bank e do Grupo Allianz.
Considerando que o programa de governo anunciado é razoavelmente positivo, Heise conclui que haverá mais reformas do que as já prometidas porque "ou a pressão financeira sobre o orçamento federal continua – tornando insustentável não fazer mais reformas, presume-se – ou a economia alemã acelera e os parceiros da coligação decidem prosseguir com os cortes". A reforma da economia alemã pode, pois, ser inevitável, para este economista. E pode ser um exemplo para o resto da Europa.
Imediatamente após a sua confirmação, Merkel fez as malas e foi visitar Chirac. Foi a primeira visita oficial e a 23 de Novembro os jornais franceses rejubilavam. Afinal os alemães não tinham eleito uma anti-gaulesa furiosa. Pois não. Mas os dias seguintes da sua viagem também devem ser seguidos. De Paris, onde foi reconhecer a especial relação franco-alemã, Merkel seguiu para Bruxelas onde se encontrou com o secretário-geral da NATO, a quem jurou suficiente amor transatlântico, e com Barroso, que lhe deu as boas-vindas num carinhoso alemão visivelmente recém-aprendido. O gesto não é irrelevante.
Quando remodelou os lugares de topo da Comissão Europeia, Durão Barroso deu guia de marcha a Françoise Le Bail, a francesa que fazia de porta-voz da Comissão e nomeou para o mesmo lugar Johannes Laitenberger. Uma nomeação com significado. Como se imagina pelo nome, Laitenberger é um alemão. Como sabe quem o conhece, é um alemão que não só fala perfeitamente português como é especialmente próximo de Portugal (é casado com uma portuguesa e estudou em Portugal). Além disso, a sua origem política é, exactamente, a CDU. Não custa imaginar que foi ele quem ensinou Barroso a dar as boas-vindas à senhora Merkel. E, sobretudo, não custa imaginar que Barroso abriu um excelente canal com Berlim, onde a sua nomeação não tinha entusiasmado o anterior chanceler. Por aqui, as coisas também parecem correr de feição à visão liberal.
Num país onde se discute, com paixão calórica, a nacionalidade de uma empresa que produz iogurtes e outras iguarias, é difícil encontrar, pelo menos no governo, gente genuinamente liberal. Ou pelo menos sinceramente adepta da economia de mercado. É por essa razão que os verdadeiramente liberais dizem que Nicolas Sarkozy não é um deles, e que os outros o acusam de ser um perigoso liberal. De facto, não se lhe conhece um caderno de encargos liberalizador, nem a sua passagem pelo Ministério das Finanças ficará para a história da economia como um momento de entusiasmo liberal. Acontece que os políticos não são apenas aquilo que fazem, são também aquilo que se imagina que são. E nesse campeonato Sarkozy é o liberal-reformista-atlantista de serviço. A mania do jogging, a visita aos Estados Unidos, as suas origens, o desassombro de algumas declarações públicas, e o facto de se ter afastado de Chirac pelo lado liberal, fazem de Nicolas um quase hayekiano. Claro que não é, mas parece evidente que a sua amizade pessoal com a senhora Merkel, o seu afastamento em relação a Chirac, o seu ar moderno, tudo somado faz do líder da UMP o presidente desejado pelos que esperam que a França faça uma pequena revolução e adira ao modelo reformista. Ou, pelo menos, que não insulte a perspectiva anglo-saxónica do mundo como desporto político. Em particular a perspectiva económica.
Ora, depois dos incêndios de carros e demais rebuliços nos subúrbios franceses, a população parece ter compreendido Sarkozy, por mais que isso provoque urticária à esquerda e aos intelectuais. Enquanto nos dias que se seguiram aos confrontos, nos jornais Nicolas era o vilão, nas sondagens era o herói. Resta saber como será daqui a um ano.
Como facilmente se conclui, 2006 não será um annus mirabilis para a Europa ou para a direita liberal europeia. Sem reformas económicas não há milagres e, de resto, nem tudo o que faz falta acontecer vai estar pronto este ano. Ainda assim, há bons sinais.
Claro que Sarkozy só pode vir a ser presidente em 2007, e isto se se confirmar a absoluta improbabilidade de fazer eleger um candidato da esquerda, tendo em conta que, apesar de um recente congresso supostamente pacificador, os socialistas franceses não se recompuseram ainda. E se Villepin, um produto mais tipicamente francês, não se tornar mais desejável. Por outro lado, em Londres Cameron é só uma esperança. Uma boa esperança, mas nada mais do que isso. E pode ter de esperar até ao longínquo ano de 2010 para ir a votos. Acresce que em Berlim a convicção de que a coligação será eficiente e duradoura não é, de modo algum, generalizada. E em Bruxelas os equilíbrios e compromissos da Comissão Barroso não são uma garantia para quem quer ver uma agenda reformista em acção. Até porque qualquer iniciativa mais ousada pode ser desfeita às mãos do Conselho Europeu.
Quer isto dizer que a tese de que há uma viragem à direita é um acto de fé, eventualmente inspirado pela quadra natalícia? Não. A realidade é que o pêndulo vai agora nesta direcção. Resta saber se o balanço será convenientemente aproveitado. Depois da entrada de oito países com vontade de arriscar e de furar as barreiras dos mercados fechados, é tempo de os maiores países darem o exemplo. Sem economia não há empregos nem Europa social.
Alguém tem de explicar aos franceses – e a muitos outros europeus – que na indústria dos iogurtes o importante não é a nacionalidade, é a rentabilidade.
Angela Merkel, David Cameron, Nicolas Sarkozy. Estes três nomes, e potenciais líderes europeus, podem ser a próxima oportunidade para a Europa. Em substituição do motor franco-alemão, é possível criar um eixo com sede em Paris, Londres e Berlim. Um eixo liberal. A economia europeia agradeceria.
Eleito líder dos conservadores com uma maioria mais do que confortável, David Cameron dirigiu-se pela primeira vez ao primeiro-ministro britânico para lhe dizer que Blair já tinha sido o futuro, e agora era ele, David. Quem viu a transmissão na BBC terá reparado que Blair não só esteve bastante condescendente, como até parecia um pouco enternecido. Finalmente tinha sucessor. E, como se adivinhava, não era do seu lado, era do lado de lá da bancada parlamentar. Gordon Brown irá, muito provavelmente, herdar o governo e o Labour, mas o New parece ter sido deixado em herança a Cameron. Resta saber quando é que vão ser as eleições legislativas inglesas, previstas para 2009-2010, e quem é que as vai ganhar, claro.
Algumas semanas antes, em Berlim, uma frágil Angela Merkel ganhava as eleições legislativas antecipadas por uma margem minúscula mas suficiente para fazer regressar os democrata-cristãos ao poder. Acompanhados pelos sociais-democratas, é certo, mas de volta e com promessas de reforma.
Quase ao mesmo tempo, as revoltas suburbanas em França recolocaram Nicolas Sarkozy, o líder da UMP e farei-tudo-o-que-for-preciso-para-ser-candidato-presidencial-da-direita-em-2007, no centro das atenções. Insultado pelas elites por ter adoptado uma postura securitária e um discurso pouco social, o filho de um imigrante da burguesia húngara recebeu o acordo de uma vasta maioria da população. Quando os subúrbios ardem a classe média tende a encontrar maiores virtudes na Lei e na Ordem do que nas preocupações sociais.
Para fechar esta coincidência temporal, no início de Novembro José Manuel Barroso, que não pôde escolher os comissários que tem, remodelou os lugares de topo da administração comunitária numa espécie de golpe de estado entre as oito da noite e as oito da manhã. No dia seguinte o conservador britânico The Daily Telegraph declarava "Tatcherites take Control of Europe". Um exagero, sem dúvida. Mas a verdade é que a revolução foi suficientemente visível para que um eurodeputado centrista francês se declarasse, numa carta aberta, inquieto enquanto francês, enquanto europeu e enquanto democrata. Jean-Louis Bourlanges, é esse o nome do patriota, percebeu o óbvio: depois de ter andado entre um lado e o outro, Barroso resolveu ser liberal. Pelo menos para já. Ou por enquanto.
A esta altura ninguém conhece o resto do guião nem sabe como vai acabar a história, mas estes quatro actos parecem indicar que há uma viragem à direita. E há boas razões para isso.
O modelo social europeu não está em causa, nem vai estar. Ao contrário do que muitas vezes se diz e escreve, não existe uma guerra ideológica na Europa entre uma Esquerda anticapitalista e uma Direita supostamente ultraliberal que abomina o estado social e pretende um modelo liberal puro e duro. Quanto mais não seja porque não houve nem há espaço para um liberalismo puro, muito menos duro, na Europa. E porque à esquerda também há alguma dose de realismo. O que divide as águas é outra coisa, é a economia, é a oposição entre uma visão reformista e libertadora da economia e uma ideia antiga de capitalismo sobretudo de Estado e de direitos irremediavelmente adquiridos. O confronto é este e a boa notícia é que a Europa está a virar à direita. Ou, pelo menos, tem condições para o fazer.
Roger Cohen, jornalista e colunista do New York Times e do International Herald Tribune especializado em assuntos internacionais, resumiu bem a situação. Ainda em Outubro explicava que os ataques do fundamentalismo islâmico em Madrid, Amesterdão e Londres, por um lado, e a dificuldade da economia europeia em responder à pressão provocada pelo desemprego imediato e pelo constante envelhecimento da população, por outro, empurram a Europa para a Direita. "O terrorismo significa que a Lei a Ordem, parte da mensagem eleitoral vencedora de Angela Merkel está na moda, e que a indulgência em relação à imigração está fora de moda. As dificuldades económicas, especialmente em França e na Alemanha, empurram na direcção das reformas económicas. Ambas as tendências favorecem a direita."
Do outro lado da barricada, o berlinense Die Tagszeitung garantia, no início de Dezembro, que os tempos de mudança que tantos previam afinal não viriam aí. Na sequência da formação do governo alemão, Sabine Herre achava que os que contavam com um trio germano-franco-britânico, chefiado por Merkel, pelo presidenciável Sarkozy e por Blair para colocarem a Europa no caminho das reformas profundas, nomeadamente as reformas económicas, deviam começar a refazer a sua contabilidade. Segundo esta corrente de opinião, Blair está morto, Sarkozy não foi liberal nem reformista quando foi ministro das Finanças em 2004 e a coligação liderada por Merkel é um acordo provisório com traição à vista. Um desastre, portanto, só comparável ao suposto annus horribilis de 2005. É uma visão. Há outras.
Depois de fazer o seu número de apresentação na Câmara dos Comuns, Cameron dirigiu-se a uma escola de um bairro pobre de Londres. O último sítio onde encontrar eleitores conservadores, sobretudo para quem os imagina brancos e com particular predilecção pela caça à raposa. Acontece que o líder conservador, que nem 40 anos tem, resolveu mudar o partido. Pode parecer uma contradição, mas a convicção generalizada é a de que o maior problema dos conservadores era a sua imagem retrógrada e distante das preocupações dos ingleses comuns. Cameron, que percebeu isso desde o início da corrida, prometeu procurar chegar a um eleitorado jovem e urbano. Prometeu e, para já, parece que vai cumprir. O ministro das Finanças que manteve no gabinete sombra é o seu amigo George Osborne, o homem − ou será melhor dizer o rapaz de 34 anos? − que já defendeu que se devia discutir a possibilidade de introduzir o flat tax na Grã-Bretanha. De resto, declarou-se contra a exagerada regulamentação europeia, contra medidas excessivamente securitárias (na perspectiva dos ingleses o Bilhete de Identidade é uma violência securitária), defende uma política de imigração controlada e razoável, foi a favor da intervenção no Iraque e não quer uma retirada irresponsável agora. Acresce que declarou, e também parece disposto a cumprir, não querer fazer uma oposição constante. Ou seja, agora que há cada vez mais deputados trabalhistas a exibir sem reservas a sua falta de amor ao chefe e a sua pouca convicção liberal, os Tories estão disponíveis para herdar tudo que ficar à direita do Labour. Neste cenário, é Gordon Brown quem corre maiores riscos, já que pode ter de escolher entre perder as políticas de centro ou o partido de esquerda.
Com Londres, portanto, parece que se pode continuar a contar para a reforma da economia europeia. Não será por aqui que a directiva dos serviços vai sucumbir ou que o reforço das competências comunitárias vai receber um impulso.
Entretanto, em Berlim Angela Merkel agarrou-se à magra vitória eleitoral e só descansou quando foi oficializada como chefe da coligação CDU/CSU + SPD, assegurando uma agenda política que inclui aumentos do IVA para fazer face ao défice mas, ao mesmo tempo, reduções das quotizações sociais, incentivos fiscais ao investimento, reforma do mercado de trabalho e, como começa a acontecer em todos os países onde o modelo social europeu é mais generoso, a alteração da idade da reforma. Para mais tarde, claro. A senhora, que ia perdendo as eleições por ter sido demasiado sincera quanto à necessidade de reformas da economia alemã, fez um contrato com os sociais-democratas que muitos declaram já ser um casamento com divórcio certo e conturbada divisão de bens à vista. Um raciocínio linear diria que sim. Por que razão é que os únicos partidos com possibilidade de dirigir a política alemã hão-de partilhar o ónus das reformas dolorosas? Porque elas vão resultar, responde Michael Heise, economista chefe do Dresdner Bank e do Grupo Allianz.
Considerando que o programa de governo anunciado é razoavelmente positivo, Heise conclui que haverá mais reformas do que as já prometidas porque "ou a pressão financeira sobre o orçamento federal continua – tornando insustentável não fazer mais reformas, presume-se – ou a economia alemã acelera e os parceiros da coligação decidem prosseguir com os cortes". A reforma da economia alemã pode, pois, ser inevitável, para este economista. E pode ser um exemplo para o resto da Europa.
Imediatamente após a sua confirmação, Merkel fez as malas e foi visitar Chirac. Foi a primeira visita oficial e a 23 de Novembro os jornais franceses rejubilavam. Afinal os alemães não tinham eleito uma anti-gaulesa furiosa. Pois não. Mas os dias seguintes da sua viagem também devem ser seguidos. De Paris, onde foi reconhecer a especial relação franco-alemã, Merkel seguiu para Bruxelas onde se encontrou com o secretário-geral da NATO, a quem jurou suficiente amor transatlântico, e com Barroso, que lhe deu as boas-vindas num carinhoso alemão visivelmente recém-aprendido. O gesto não é irrelevante.
Quando remodelou os lugares de topo da Comissão Europeia, Durão Barroso deu guia de marcha a Françoise Le Bail, a francesa que fazia de porta-voz da Comissão e nomeou para o mesmo lugar Johannes Laitenberger. Uma nomeação com significado. Como se imagina pelo nome, Laitenberger é um alemão. Como sabe quem o conhece, é um alemão que não só fala perfeitamente português como é especialmente próximo de Portugal (é casado com uma portuguesa e estudou em Portugal). Além disso, a sua origem política é, exactamente, a CDU. Não custa imaginar que foi ele quem ensinou Barroso a dar as boas-vindas à senhora Merkel. E, sobretudo, não custa imaginar que Barroso abriu um excelente canal com Berlim, onde a sua nomeação não tinha entusiasmado o anterior chanceler. Por aqui, as coisas também parecem correr de feição à visão liberal.
Num país onde se discute, com paixão calórica, a nacionalidade de uma empresa que produz iogurtes e outras iguarias, é difícil encontrar, pelo menos no governo, gente genuinamente liberal. Ou pelo menos sinceramente adepta da economia de mercado. É por essa razão que os verdadeiramente liberais dizem que Nicolas Sarkozy não é um deles, e que os outros o acusam de ser um perigoso liberal. De facto, não se lhe conhece um caderno de encargos liberalizador, nem a sua passagem pelo Ministério das Finanças ficará para a história da economia como um momento de entusiasmo liberal. Acontece que os políticos não são apenas aquilo que fazem, são também aquilo que se imagina que são. E nesse campeonato Sarkozy é o liberal-reformista-atlantista de serviço. A mania do jogging, a visita aos Estados Unidos, as suas origens, o desassombro de algumas declarações públicas, e o facto de se ter afastado de Chirac pelo lado liberal, fazem de Nicolas um quase hayekiano. Claro que não é, mas parece evidente que a sua amizade pessoal com a senhora Merkel, o seu afastamento em relação a Chirac, o seu ar moderno, tudo somado faz do líder da UMP o presidente desejado pelos que esperam que a França faça uma pequena revolução e adira ao modelo reformista. Ou, pelo menos, que não insulte a perspectiva anglo-saxónica do mundo como desporto político. Em particular a perspectiva económica.
Ora, depois dos incêndios de carros e demais rebuliços nos subúrbios franceses, a população parece ter compreendido Sarkozy, por mais que isso provoque urticária à esquerda e aos intelectuais. Enquanto nos dias que se seguiram aos confrontos, nos jornais Nicolas era o vilão, nas sondagens era o herói. Resta saber como será daqui a um ano.
Como facilmente se conclui, 2006 não será um annus mirabilis para a Europa ou para a direita liberal europeia. Sem reformas económicas não há milagres e, de resto, nem tudo o que faz falta acontecer vai estar pronto este ano. Ainda assim, há bons sinais.
Claro que Sarkozy só pode vir a ser presidente em 2007, e isto se se confirmar a absoluta improbabilidade de fazer eleger um candidato da esquerda, tendo em conta que, apesar de um recente congresso supostamente pacificador, os socialistas franceses não se recompuseram ainda. E se Villepin, um produto mais tipicamente francês, não se tornar mais desejável. Por outro lado, em Londres Cameron é só uma esperança. Uma boa esperança, mas nada mais do que isso. E pode ter de esperar até ao longínquo ano de 2010 para ir a votos. Acresce que em Berlim a convicção de que a coligação será eficiente e duradoura não é, de modo algum, generalizada. E em Bruxelas os equilíbrios e compromissos da Comissão Barroso não são uma garantia para quem quer ver uma agenda reformista em acção. Até porque qualquer iniciativa mais ousada pode ser desfeita às mãos do Conselho Europeu.
Quer isto dizer que a tese de que há uma viragem à direita é um acto de fé, eventualmente inspirado pela quadra natalícia? Não. A realidade é que o pêndulo vai agora nesta direcção. Resta saber se o balanço será convenientemente aproveitado. Depois da entrada de oito países com vontade de arriscar e de furar as barreiras dos mercados fechados, é tempo de os maiores países darem o exemplo. Sem economia não há empregos nem Europa social.
Alguém tem de explicar aos franceses – e a muitos outros europeus – que na indústria dos iogurtes o importante não é a nacionalidade, é a rentabilidade.
2 Comments:
É interessante como Portugal, que é um pais onde a presença do estado na economia é bastante maior que no nosso país (meu ponto de vista), as pessoas discutam o liberalismo com tanta mais serenidade que nós. Ao fazer uma busca por blogs que versassem sobre o tema, entre os blogs em português, 9 entre 10 eram de lá. E os blogs brasileiros, a maioria descia o malho. Eu realmente acho que os Liberais do Brasil necessitam sair do armário! Não temos nem um partido!
Eu ainda acho que a França tem um feio choque cultural pelo qual passar.
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