segunda-feira, maio 23, 2005

Sobre o hábito da leitura...

C'est le temps de mourir, et non pas d'être hereux
Sempre estranho a cobertura que a media faz de um evento como a bienal do livro do Rio de Janeiro: geralmente focalizam alguma adolescente bastante distinta em sua morfologia lendo alguma coisa, coisa essa que pode ser até o que a ONU não considera como livro - ou seja, publicações com menos de 50 páginas - mas normalmente são livros em uma acepção comum do termo. Logo depois a câmera corta para uma entrevista desta mesma adolescente, comentando sobre a importância do ato de ler. Logo depois, de volta aos estúdios, Pedro Bial, civicamente feliz, comenta emocionado sobre o tal ato de ler e nos incentiva a ler cada vez mais, porque a leitura, e agora cortamos para algum escritor de terceiro escalão como Luis Fernando Veríssimo ou Ruy Castro, é uma porta para a cidadania, a inclusão social e todo o conhecimento das coisas passadas, presentes e futuras, em resumo: a panacéia.
E não é em nada distante disso aquelas campanhas ridículas da Globo mostrando esportistas lendo sob o lema “ler também é um esporte” - se não se mostrasse ser um esporte tão exaustivo para a maioria da população! Quanto aos esportistas, nunca os vi lendo nada “a nível de” um Paulo Coelho, quando muito lêem as obras (no sentido que quiser da palavra) daquele Titã casado com a Malu Mulher.
O que me interessa neste ponto é a dimensão moral que a leitura em si ganha em uma sociedade analfabeta e ao mesmo tempo (talvez exatamente por isso) livresca como a nossa. Que seja notado que em muitos círculos, não separados por ilustração, o grau de inteligência e cultura é intuído a partir do grau de leitura, mas o mais engraçado é quando acontece o contrário. Embora na maioria das vezes uma pessoa culta tenha realmente uma carga de leitura vasta, nela mesma seu valor mais importante não é exatamente a extensão mas sua capacidade de comunicar com as outras e seu valor para a formação cultural não apenas do homem mas de toda sua cultura.
Daí que o que se entende realmente por cultura não é exatamente uma carga amorfa de leitura, mas um grupo chave de livros para serem lidos e relidos sempre, a partir dos quais o conhecimento flui e é originado, a tal idéia dos clássicos. Sim, trata-se de uma volta ao conceito de Paideía grega, que deliberadamente confunde educação com literatura, que seja vista uma educação não como essa propagandeada pela Unesco aí na nossa televisão. E é exatamente aqui que retorno ao primeiro tema deste post, há dois tipos de leitura como há dois tipos de educação.
A primeira educação é a educação do Paulo Freire e de todos aqueles pedagogos que ao alfabetizar largas somas populacionais pensam conduzir o país ao desenvolvimento e à solução de todos seus problemas. Folgo em saber que há gente que ainda acredita nisso, mas não neguemos sua importância, esta educação tem como utilidade manter as engrenagens e o funcionamento do Estado, assim como se torna uma ferramenta para qualquer indivíduo poder sobreviver economicamente.
A segunda educação é a famosa educação liberal cujo objetivo não é economico como a educação primária ou a terciária tecnicista (como o moderno modelo de universidade) ele é antes de tudo moral: a educação liberal pode até ser inútil, mas seus objetivos são exatamente permitir o total desabrochar das capacidades humanas, aquilo que o tio Ari chamava de eudaimonia, que a gente pode traduzir como “felicidade plena”, felicidade causada pelo desenvolvimento máximo das capacidades humanas potenciais. Trata-se sobretudo de o que e como ler.
Quanto a primeira leitura, desinteressada e leve, que corre por tudo sem se fixar em bases, seu único fim pode ser o divertimento, que não é nada mais desviar a atenção, o pensamento de fatores mais importantes como o trabalho de amanhã ou do tempo que passa sem utilidade. É, em suma, um passatempo, e acreditar que alguém pode por ação do Harry Potter pular para um Molière ou um Pirandello, ou ainda mais para um Leibniz ou um Aristóteles é a epítome da ingenuidade. Quem lê Harry Potter está mais próximo de ver seus filmes do que em ler algo mais consistente, que seja Agatha Christie.
Ler por diversão não é crime, não é um ato vil, e nem um desvio moral, apenas não é uma virtude, no sentido nicomacaico mesmo desse termo, areté, valor, excelência, e tal.
Conhecer a história do pensamento, poder interpretar o mundo a sua volta livre das aparências e partidarismos modernos é uma das conseqüências da educação liberal, mas não é seu objetivo, este é a “felicidade plena”, “felicidade última”, em uma espécie de escatologia ética.


o que posso dizer sobre este post é que eu gostaria de tê-lo escrito.
mas foi esse cara.