terça-feira, fevereiro 01, 2005

Porto Alegre não bebe Coca

O espírito de sacrifício dos combatentes utópicos é incomensurável. Oficialmente fazia um calor de 30ºC, somados a mais algumas dezenas de graus que ninguém sabia donde vinha e que aderia à pele como algo pegajoso. Entretanto em nenhum lugar do FSM se podia comprar a malvada Coca-Cola: "Está proibida em todo o recinto do Fórum" se apressou em me dizer uma altiva e linda mocinha saída da minha adolescência de pôsteres de Che Guevara e agora travestida em guerreira anti-globalização.

Pois bem, o Fórum da Liberdade começa proibindo. Rogo inutilmente e me deparo com um professor barbudo com credencial não vencida de velho maoísta: "Este Fórum luta contra as multinacionais e contra a opressão americana!" Contra as multinacionais? Mas se todos aqui chegaram em aviões de companhias multinacionais? Mas se usam internet como loucos, que é uma invenção americana?E os telefones celulares para convocar os amigos? E o Michael Moore que se empanturra de Coca-Cola? Ainda com espírito provocador e acenando com um destes lencinhos palestinos que compõem a paisagem de fundo deste fórum, balbucio timidamente: "Sabem que a fábrica da Coca-Cola em Ramalá dá empregos a dez mil palestinos? Como esse boicote é feito lá?" Mas recebi o desprezo do velho revolucionário e seus iluminados alunos e decidi matar minha sede com um guaraná não-globalizado que não suaviza minhas contradições mas ao menos atenua meu calor.

A verdade é que o FSM possui grande diversidade e seria injusto não assinalar a quantidade de conferências, debates e projetos que têm como objetivo contornar as injustiças e encontrar novas fórmulas. Especialmente interessantes são aqueles que estão vinculados ao meio ambiente e aos direitos da infância. Modestamente o debate Dois Povos Dois Estados - O caminho da negociação no conflito palestino-israelense, organizado pela UNESCO, do qual eu participei junto com o professor palestino Manuel Hassassian e seu amigo israelense Edward Kaufman, conhecidos pacifistas, pôde ajudar a dar uma visão mais serena do conflito. Mas a serenidade não é precisamente o substantivo deste Fórum e aí estão as vaias e os gritos de "traidor" contra Lula; a proibição de que o prefeito de Porto Alegre, José Fogaça, visite o Fórum, apesar de ser o prefeito democraticamente escolhido e o convite para que Hugo Chavez seja uma das grandes estrelas. Foi um milagre não convidarem Muamar Kadafi! O lema que acompanha pomposamente o Fórum, outro mundo é possível, começa boicotando a livre circulação de produtos; proibindo a entrada de representantes legítimos e convidando presidentes populistas, expoentes do pior socialismo medievo.À partir daqui o Fórum é patrimônio dos setores mais ruidosos da extrema esquerda, cuja incapacidade para conseguir resultados eleitorais não os impede de se auto nomearem proprietários exclusivos dos grande conceitos de solidariedade. Não sei se outro mundo é possível, mas ainda acredito ser possível sonhá-lo, mas o que estou certa é que não o vejo no FSM. Não os vejo nos murais grafitados a favor da "heróica resistência iraquiana", convertendo os loucos assassinos que degolam seres humanos em heróis românticos. Não os vejo nos textos que equiparam a Alemanha Nazista aos EUA ou a Israel - minimizando até a perversão do que significou o nazismo - e leio sobre isto no mesmo dia em que o mundo comemora o sessenta anos da libertação de Auschwitz. Não o vejo na inexistência de uma mínima recordação, de uma mínima homenagem às vitimas do Holocausto. No Fórum onde outro mundo é possível, o desprezo às vitimas judias da Shoa é mais que evidente. Não, não vejo este novo mundo na simpatia com que são acolhidos países vítimas da maldade americana, como esta bonita democracia sobrecarregada de direitos humanos, chamada Irã. E continuo: Inexistência de um mínimo discurso crítico para com as ditaduras dos petrodólares, mas ódio feroz a Israel. Lógico que não há duvida que todos os loucos que suicidam-se matando dezenas de pessoas pelo mundo inteiro são milicianos que lutam pela liberdade. Nenhuma análise sobre a ideologia totalitária do integralismo islâmico, mas uma consideração geral de que o único causador do problema mundial fala inglês. E o que mais me dói é a absoluta ausência de um panfleto, um papelinho, uma pequena frase para recordar os milhões de mulheres escravizadas em nome de Alá. Se fosse em nome dos Estados Unidos...

Mas o FSM e tantos outros de seu estilo só se preocupam com as vitimas quando os "bandidos" ostentam Stars and Stripes ou a Estrela de Daví no peito. Vejam o presidente totalitário do Sudão, assassino de milhões de pessoas, não tem ninguém que o acuse no fórum da solidariedade. Existe o Sudão no imaginário do FSM? Um dia desses vão convidá-lo para que fale pelo Terceiro Mundo.Dizia um ditado que haveria outros mundos, mas que todos estavam neste. Passeando pelo Fórum de Porto Alegre, rodeada de toda estética cheguevarista em uso, suando uma gorda gota de um calor abrasador anti-multinacional, acompanhada das palavras de ordem da extrema esquerda - a mesma que sempre traiu a liberdade - tenho a impressão que um outro mundo existe e é possível. Mas este outro mundo não está neste Fórum Social Mundial. Se estes daqui com seus dogmas anti-liberais; seu maniqueísmo; seu desprezo pelos valores da democracia; seus heróis terroristas e suas fobias têm que mudar o mundo, terão que voltar as velhas idéias de 68. Se vocês mudarem o mundo, parem-no, que eu vou descer!

Publicado por El Pais.

A autora é escritora, ex-deputada do Parlamento Europeu, membro do Partido Socialista da Espanha e militante feminista. Esteve no Fórum Social Mundial a convite da Federação Israelita do Rio Grande do Sul (FIRGS) e corre o mundo fazendo palestras defendendo Israel e o sionismo. Este artigo foi publicado originalmente em castelhano no jornal espanhol.

2 Comments:

Blogger viajandona said...

Mesmo estando perto não pude ir ver de perto o FSM, mas infelizmente pelo que observei o artigo está correto.Não consigo entender como a juventude dita pensante se apega a idéias que já estão totalmente ultrapassadas.Um outro mundo é possível e necessário, mas alicerçado em idéias nnovas e em príncipios básicos de respoeito a liberdade de escolha.

13 de fevereiro de 2005 às 15:57  
Blogger O Fantasma de Bastiat said...

Belíssimo artigo. Muito bem escrito - e traduzido.

12 de março de 2005 às 19:26  

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